De tantas manualidades possíveis... porquê crochet?
Dica: não é por causa dos quadradinhos da avó.
Adoro manualidades, mas o crochet conquistou um lugar especial no meu coração e nas minhas mãos. E na minha mente. De todos, de tantos a que me podia dedicar, porquê o crochet?
"It ticks all the boxes."
É um conceito simples: uma agulha, um fio.
É portátil: podemos levar um projecto de crochet connosco para qualquer lugar, desde que caiba numa mala. Até podemos crochetar a andar (acredita: já o fiz!). Eu levo sempre algum projecto em crochet comigo quando vou para e venho do trabalho. Se usas transportes públicos, e passas mais de meia hora em autocarros ou comboios, o crochet é perfeito para ajudar a passar o tempo e tornar a viagem tão útil quanto agradável. Nem sequer me incomoda quando há engarrafamentos. Pelo contrário, aliás! :D
É um mundo sem fim. Há sempre alguma coisa nova para aprender e experiências para fazer. Crochet simples e tradicional, novos pontos, renda, crochet mosaico ou crochet conduzido (tapestry crochet), trabalho com cores, forma livre, amigurumi, combinações com outras manualidades como costura, tricot ou até cerâmica. Não conhece limites! E é também uma porta de entrada para outros mundos, como o das ferramentas e dos materiais, e para algo que me diz muito, uma vez que estudei História na faculdade, e gosto de saber mais sobre as histórias por trás do crochet, dos têxteis e das artes e ofícios em geral. Mas hei-de ter oportunidade (ou arranjá-la) de divagar sobre estes temas por aqui noutra ocasião.
É muito versátil. Mudando o fio ou a agulha, a técnica ou o método de construção, podemos fazer todo o tipo de peças, desde acessórios a vestuário, a objectos para a casa como tapetes, candeeiros ou cestos.
É uma comunidade. E uma comunidade que é maravilhosa, entusiástica e compreensiva. Se tens acesso à internet, não interessa onde estás porque consegues sempre encontrar alguém que te inspire, ensine e apoie. De canais de YouTube a blogues e websites, Instagram e Pinterest, e até podcasts, é fácil cair na toca do coelho para nunca mais de lá sair. E se quiseres, também podes encontrar ou criar esta comunidade offline, com cada vez mais oportunidades para conhecer outros artesãos e adeptos das manualidades através de workshops, encontros e eventos de todos os tipos.
É um refúgio. Uma oportunidade para descontrair e acalmar, algo em que podes encontrar consolo. A sua natureza repetitiva ou liberdade total de regras, e abertura à criatividade e à experimentação; o seu potencial para ser muito simples e quase automático ou inconsciente ou, se assim quiseres, complexo e que exige a tua total atenção: o crochet permite-te abstraíres-te do mundo e estares completamente presente no que estás a fazer, ou a conseguir pensar em problemas e encontrar soluções.
É um professor. Se te decides a aprender crochet e a desenvolver as tuas habilidades na técnica, se não fores já paciente e persistente, vais aprender estas competências de vida importantes mais tarde ou mais cedo. Vais também aprender a ser mais gentil contigo, e que consegues mesmo fazer coisas, coisas novas, coisas difíceis. E vais perceber que tu és criativa/o, como são todos os seres humanos.
Mas o crochet é apenas o meu ofício de eleição entre muitos outros possíveis
(E praticamente tudo o que acabei de dizer acima se aplica a todas as artes manuais, devo acrescentar, se envolvem as tuas mãos, o teu corpo e a tua mente.)
Já experimentei muitas coisas em algum momento, desde origami a barro seco ou Fimo, a bordado ou trabalho com madeira, e quero voltar a algumas delas eventualmente.
Recuando muuuito no tempo, lembro-me da minha mãe me comprar aqueles kits de bordado para criança, que incluiam uma tela desenhada, uma moldura em plástico, materiais e instruções. Fiz vários e ainda guardo alguns deles. Sempre vi a minha mãe a fazer alguma coisa, sobretudo tricot (fazia camisolas para mim e o meu irmão), e, nos anos 90, tapetes de Arraiolos.
Hoje, tenho pena de não ter aproveitado a oportunidade para aprender mais com ela quando era nova o suficiente para não ter as responsabilidades que vêm com a idade adulta. Mas pensava que o feminismo era algo diferente do que penso hoje, e que implicava não fazer nada que soasse, mesmo que vagamente, a feminino ou doméstico. Felizmente, uma pessoa cresce.
Quero experimentar e aprender muitas mais manualidades. Aforava fazer cerâmica, tecelagem, macramé, estampagem, marroquinaria, todas as coisas, mas ainda não cheguei lá. E é possível ou mesmo provável que nunca chegue. Comprei um tear da Bzugo em 2020, no início da pandemia, como um presente de aniversário para mim própria. E ainda hei-de usá-lo muito mais do que usei até agora, mas… acabo sempre por regressar (obsessivamente) ao crochet. Algumas manualidades exigem um espaço que o crochet não exige, e estou ainda em modo de transição para um espaço que possa chamar de meu. Cada coisa a seu tempo.
De tempos a tempos, vem-me à cabeça: porque é que gosto tanto de crochet?
Como o amor, algumas coisas não podem ser explicadas, mas é à mesma bom tentar compreendê-las.
Aprendi o básico com a minha mãe quando tinha 20 e muitos anos, acho eu. Quando digo “básico”, digo-o literalmente: nó corrediço, corrente inicial e ponto baixo. Mostrou-me apenas como começar numa “aula” que não deve ter demorado mais do que 5 minutos, de pé, junto à mesa de jantar. E acredita que foi e é o suficiente para começar a crochetar.
Durante muito tempo, não fiz mais do que isto. Uma pequena bolsa ou outra, um pequeno cesto aqui e ali, com o fio mais fino que juntava com outro para ficar um pouco mais grosso. Pouco a pouco, comecei a explorar pontos, e com a ajuda preciosa da internet e de professores online fantásticos (mesmo que inconscientes da atenção da sua aluna), tenho vindo a desenvolver as minhas capacidades crocheteiras. A dado momento, também usei trapilho porque sempre gostei de fazer acessórios como malas ou objectos para a casa. Gosto da ideia de peças que são bonitas e também úteis, que podes usar e apreciar diariamente.
Acho que o grande ponto de viragem foi quando vendi o meu apartamento em 2018.
Ter que tratar de mil coisas, sobretudo da mudança, deixou-me num estado de total ansiedade. Como tenho eczema nas mãos, o qual, como podes imaginar, adora gente ansiosa, tinha que arranjar alguma estratégia para sobreviver a esta fase com alguma réstia de sanidade no final. Entra então o crochet, salvador do dia! Nada como manter as mãos ocupadas.
(Ainda me lembro de ver os senhores da empresa de mudanças a abrir cada caixa. Com toda a gente cheia de pressa para encaixotar tudo, o meu pequeno saco de projecto desapareceu, e nem pensar que eu ia ficar sem o meu crochet por uma hora sequer!)
Mas claro que esta não é a única razão para adorar crochet. É muito mais do que um ansiolítico, apesar de valer a pena fazê-lo nem que seja apenas por essa razão. É filosofia revolucionária em acção.
Calculo que esta ocasião (a mudança) deu-me tempo de qualidade suficiente com o crochet para me focar, explorar a técnica, alimentar as minhas células cinzentas e pô-las a trabalhar, a imaginar todas as possibilidades criativas que o crochet abre, e perceber o bem que me faz. Tempo para desenvolver uma relação de amor, dedicação e respeito pelo crochet e pelas artes manuais como um todo.
Pode parecer exagero, eu sei. Mas qual o mal? Todos precisamos não só de alguém, mas também de algo que nos proporciona oportunidades de prazer, realização, expressão, e até reflexão. De momentos para nós próprios. Todos precisamos de encontrar “a nossa praia”. E às vezes esta praia pode ser um país inteiro. :P
Fazer à mão é filosofia em acção. É revolucionário.
Gosto de fazer à mão desde sempre, e sempre apreciei a mestria artesanal e o saber que envolve. É fascinante como os seres humanos, desde o início dos tempos, criam objectos e desenvolvem técnicas para resolver problemas práticos e, ao mesmo tempo, procuram torná-los belos. Não só úteis, mas também belos.
É tão humano, não é? Usar as nossas mãos e rodearmo-nos de beleza. Já paraste para pensar em no geniais que são algumas técnicas, como uma agulha de coser, com uma história com milhares de anos? Ou no sofisticado que é um tear ou um fio feito de lã ou plantas? Genial, é o que te digo. Genial.
E quando façp de história, falo também de relações e na transmissão de conhecimento de geração em geração, e entre famílias e a nossa comunidade. Falo também de comunidade, e de um fio que liga passado, presente e futuro.
A discussão sobre o que distingue arte e ofício (ou arte e artesanato) parece sempre presente, com o último a ser menorizado em relação ao anterior. Não vejo a coisa assim.
Talvez uma coisa que os distinga é não só o carácter utilitário dos objectos criados, mas também e sobretudo a forma como a técnica é transmitida e desenvolvida, a relação entre mestre e aprendiz, o dever que os praticantes sentem de transmitir um saber que não lhes pertence apenas a um indivíduo isolado. E isto é bonito e precioso.
Numa época em que parecemos obcecados com tecnologia complexa, e com tudo e qualquer coisa que nos permita não usar as mãos (o que quer dizer não usar o nosso cérebro), com a ideia de obtermos tudo à velocidade da luz com o carregar de um botão ou um comando de voz, fazer à mão é revolucionário. Ou pode ser.
Mais do que um hobby ou até um possível negócio, do que um calmante ou uma forma de dar asas à imaginação e à criatividade, fazer crochet - ou qualquer outra manualidade - é uma forma de filosofia revolucionária em acção.
Fazer à mão é uma declaração de intenções e princípios
Fazer à mão com intenção é compreender que as coisas levam o seu tempo, que o tempo das máquinas não é o tempo dos humanos e da Natureza. Que o nosso tempo *é* o tempo da Natureza.
É perceber que não há nada como tocar e interagir directamente com os materiais e com o mundo em que vivemos. Fazer à mão é sobre como, em vez de nos separarmos cada vez mais do mundo natural e tentar negar a nossa natureza - mortal, imperfeita, - devemos regressar a “casa” de alguma forma. (Mas não o digo de forma nostálgica.)
E é compreender que é essencial, para dar significado e substância à nossa existência, esta ligação a lugares e pessoas, vivas e mortas, humanas e não-humanas, construída e alimentada (também) através dos objectos e do conhecimento que uma arte manual traz à existência.
Fala-se tanto hoje de sustentabilidade e crise climática, mas estamos apenas a cavar um buraco mais fundo quanto mais olhamos para a tecnologia complexa como *a* solução para tudo, e ficamos cegos a tudo o resto. O que não é sustentável é manter o ritmo, e ainda menos acelerá-lo. É importante olhar para o que realmente nos sustém: o Planeta Terra, a Natureza, os outros e nós próprios.
(Além do mais, se/quando houver um colapso sistémico, vamos querer alguém junto a nós que saiba usar agulha e linha, assim como quem saiba cultivar, identificar plantas, cuidar uns dos outros, curar doenças, ou guiar-se pelas estrelas, só para nomear algumas competências de sobrevivência.)
E assim de repente, um texto sobre crochet chegou aqui e eu não sei exactamente como *isto* aconteceu.
Ou sei. O crochet é um mundo. E é uma parte importante do meu mundo. Quando digo que adoro crochet, adoro mesmo. E quero que seja parte do meu dia-a-dia, e cada vez mais. E quero também que toda a gente tenha o seu próprio “crochet” de alguma forma.
Falo de crochet, mas podia ser qualquer outra actividade manual que nos permita usar as nossas mãos de uma forma criativa e gratificante, mãos que trabalham em conjunto com o nosso cérebro e o nosso corpo inteiro, que nos ligam uns aos outros e ao mundo. Algo que nos coloca em contacto com a nossa natureza homo faber, com o nosso ser criativo e também social.
Porque entrar no mundo das artes manuais é entrar numa comunidade de fazedores, de conexão, de histórias e saberes e fazeres, passados através das gerações, e é fazer parte dessa rede para a tornar mais forte e mais rica para as futuras gerações.
Este meu projecto é, de alguma forma, uma pequena fibra de tecido que gostaria de acrescentar a essa rede. Espero que fiques por aqui e te juntes também!
Obrigada por chegares até aqui.
Ana
PS: À procura de um link para ilustrar o que é o bordado de Arraiolos para a versão em inglês deste artigo, encontrei dois projectos mesmo muito interessantes que não fazia ideia que existiam. Se quiseres saltar para dentro de outra toca do coelho dos têxteis, aqui tens! Também vou andar por lá de vez em quando. ;)